Raízes africanas e americanas do Rap
Um dos grandes símbolos da resistência e da consciência
racial negra, de sua riqueza e criatividade, está também eivado de
contradições. Esta forma musical, que se tornou sucesso mundial, foi apropriada
pelo grande capital da indústria de cultura e transformada em canal ideológico
predominantemente alienante e opressivo na vertente mais mercantil do rap
atual. Não que estivesse isento de contradições desde suas origens, mas nos
referimos aqui à vertente que faz uma apologia à mais alienante das
mercadorias, o dinheiro, e retrata brutalmente as mulheres como objeto, por
exemplo.
Apesar de hoje não ser
utilizada exclusivamente por artistas negros, historicamente, a linguagem do
rap moderno tem como antepassada a tradição africana de récita poética
acompanhada por tambores e instrumentos melódicos, uma arte de contar
histórias, transmitir e atualizar a sabedoria tribal. Esta arte era própria de
poetas-cantores-sábios chamados griots, jali ou jeli, que atuavam em regiões da
África Ocidental habitadas pelos Mandingas, os Fulas, os Hauçás e outros povos.
Estes sábios cantores normalmente estavam a serviço de reis, como conselheiros,
embora também atuassem entre o comum do povo, nos vilarejos. A arte dos griots
continua viva e importante em diversas regiões da África ainda hoje. Foi
através da barbárie da escravidão que milhões de negros, dentre os quais havia
decerto inúmeros griots, foram trazidos agrilhoados em tumbeiros para as
Américas. O apego dos negros à sua cultura, àquilo que os afirmava como seres
humanos e não como mercadorias, constituiu uma das principais formas de
resistência à disposição contra o flagelo da escravidão.
Nas plantations, as grandes plantações de algodão
trabalhadas por escravos no sul dos EUA, os negros e negras cantavam para
embalar o ritmo de trabalho. Não raro, este canto era imposto pelo próprio dono
da plantação, como forma de dar ritmo ao trabalho, otimizando a produtividade.
Ocorre que, historicamente, as classes e setores sociais oprimidos sempre foram
capazes de transformar dialeticamente uma situação de opressão em contexto de
libertação. Assim, por exemplo, ocorre quando os trabalhadores, levados pela
burguesia à penúria, decidem lutar contra a miséria e se chocam inevitavelmente
contra as bases da própria sociedade burguesa. A miséria que a própria
burguesia exploradora cria pode ser uma força propulsora para lutas que tendem
a destruir a própria sociedade burguesa. Da mesma forma, aquele canto de
trabalho escravo muitas vezes estimulado pelo escravista era ao mesmo tempo
coordenado pela técnica do chamado-e-resposta: um cantor dentre os escravos
trabalhando na plantation dirigia a cantoria, “puxando” uma estrofe ou verso,
que por sua vez era respondida em coro pelos demais.
Esta técnica da música negra trazida para as Américas por
africanos está também na raiz de estilos de samba como o partido alto, por
exemplo. Incorporando a música ao trabalho forçado, única atividade que lhes
cabia na sociedade escravista, os negros mantiveram viva sua cultura ao
adaptá-la às novas condições – brutais – e transformá-la numa forma de
resistência à cruenta desumanização feita em prol da acumulação de capital. O
rap, em suas raízes, traz consigo as origens em solo geográfico e cultural
africano, mas também incorpora o lamento pelo suplício da escravidão após o
traslado da raça negra às plantações, tecendo em suas estrofes a longa história
de resistência contra este flagelo e suas reminiscências modernas. Afinal, esta
luta continuou quando a escravidão em sentido estrito se transformou em
escravidão assalariada, transformação que não alterou muito o complexo
ideológico com o qual a exploração capitalista se abateu com maior intensidade
sobre o povo negro: o racismo. A manutenção do racismo sob a igualdade formal
da democracia burguesa serve à intensificação da exploração pela desigualdade
salarial de que são vítimas os povos negros.
No Brasil, esta desigualdade de facto disfarçada pela
igualdade de jus é mascarada ainda pelo terrível mito da democracia racial
brasileira, que procura impedir que os negros se organizem e lutem contra o
racismo uma vez que este mito afirma que, por aqui, o racismo “não existe”. O
rap, neste contexto, seguiu como expressão de afirmação de negritude por um lado,
e de resistência contra o racismo e os males inerentes ao capitalismo por
outro. Desde sua entrada no Brasil nos anos 80, uma das tarefas do que de
melhor há no rap nacional tem sido justamente desmascarar a realidade com rimas
e ritmos magistralmente adaptados à prosódia brasileira. Obviamente, como já
dissemos, também o nosso rap está eivado de contradições, com diferenças de
grau. Há muito machismo, muita homofobia, muita capitulação às ideologias
burguesas que alimentam e refletem a própria violência social contra a qual se
levantam as mesmas vozes do rap.
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