terça-feira, 8 de novembro de 2016

Historia por Imagens


Raízes africanas e americanas do Rap


    Um dos grandes símbolos da resistência e da consciência racial negra, de sua riqueza e criatividade, está também eivado de contradições. Esta forma musical, que se tornou sucesso mundial, foi apropriada pelo grande capital da indústria de cultura e transformada em canal ideológico predominantemente alienante e opressivo na vertente mais mercantil do rap atual. Não que estivesse isento de contradições desde suas origens, mas nos referimos aqui à vertente que faz uma apologia à mais alienante das mercadorias, o dinheiro, e retrata brutalmente as mulheres como objeto, por exemplo.


    Apesar de hoje não ser utilizada exclusivamente por artistas negros, historicamente, a linguagem do rap moderno tem como antepassada a tradição africana de récita poética acompanhada por tambores e instrumentos melódicos, uma arte de contar histórias, transmitir e atualizar a sabedoria tribal. Esta arte era própria de poetas-cantores-sábios chamados griots, jali ou jeli, que atuavam em regiões da África Ocidental habitadas pelos Mandingas, os Fulas, os Hauçás e outros povos. Estes sábios cantores normalmente estavam a serviço de reis, como conselheiros, embora também atuassem entre o comum do povo, nos vilarejos. A arte dos griots continua viva e importante em diversas regiões da África ainda hoje. Foi através da barbárie da escravidão que milhões de negros, dentre os quais havia decerto inúmeros griots, foram trazidos agrilhoados em tumbeiros para as Américas. O apego dos negros à sua cultura, àquilo que os afirmava como seres humanos e não como mercadorias, constituiu uma das principais formas de resistência à disposição contra o flagelo da escravidão.



        Nas plantations, as grandes plantações de algodão trabalhadas por escravos no sul dos EUA, os negros e negras cantavam para embalar o ritmo de trabalho. Não raro, este canto era imposto pelo próprio dono da plantação, como forma de dar ritmo ao trabalho, otimizando a produtividade. Ocorre que, historicamente, as classes e setores sociais oprimidos sempre foram capazes de transformar dialeticamente uma situação de opressão em contexto de libertação. Assim, por exemplo, ocorre quando os trabalhadores, levados pela burguesia à penúria, decidem lutar contra a miséria e se chocam inevitavelmente contra as bases da própria sociedade burguesa. A miséria que a própria burguesia exploradora cria pode ser uma força propulsora para lutas que tendem a destruir a própria sociedade burguesa. Da mesma forma, aquele canto de trabalho escravo muitas vezes estimulado pelo escravista era ao mesmo tempo coordenado pela técnica do chamado-e-resposta: um cantor dentre os escravos trabalhando na plantation dirigia a cantoria, “puxando” uma estrofe ou verso, que por sua vez era respondida em coro pelos demais.



      Esta técnica da música negra trazida para as Américas por africanos está também na raiz de estilos de samba como o partido alto, por exemplo. Incorporando a música ao trabalho forçado, única atividade que lhes cabia na sociedade escravista, os negros mantiveram viva sua cultura ao adaptá-la às novas condições – brutais – e transformá-la numa forma de resistência à cruenta desumanização feita em prol da acumulação de capital. O rap, em suas raízes, traz consigo as origens em solo geográfico e cultural africano, mas também incorpora o lamento pelo suplício da escravidão após o traslado da raça negra às plantações, tecendo em suas estrofes a longa história de resistência contra este flagelo e suas reminiscências modernas. Afinal, esta luta continuou quando a escravidão em sentido estrito se transformou em escravidão assalariada, transformação que não alterou muito o complexo ideológico com o qual a exploração capitalista se abateu com maior intensidade sobre o povo negro: o racismo. A manutenção do racismo sob a igualdade formal da democracia burguesa serve à intensificação da exploração pela desigualdade salarial de que são vítimas os povos negros.


      No Brasil, esta desigualdade de facto disfarçada pela igualdade de jus é mascarada ainda pelo terrível mito da democracia racial brasileira, que procura impedir que os negros se organizem e lutem contra o racismo uma vez que este mito afirma que, por aqui, o racismo “não existe”. O rap, neste contexto, seguiu como expressão de afirmação de negritude por um lado, e de resistência contra o racismo e os males inerentes ao capitalismo por outro. Desde sua entrada no Brasil nos anos 80, uma das tarefas do que de melhor há no rap nacional tem sido justamente desmascarar a realidade com rimas e ritmos magistralmente adaptados à prosódia brasileira. Obviamente, como já dissemos, também o nosso rap está eivado de contradições, com diferenças de grau. Há muito machismo, muita homofobia, muita capitulação às ideologias burguesas que alimentam e refletem a própria violência social contra a qual se levantam as mesmas vozes do rap.